domingo, 14 de agosto de 2011

Heteroinquisidores - uma reflexão para o dia dos pais

Minhas visitas à Índia são recheadas de descobertas culturais. Uma das que mais me fascina é a cena de homens de mãos dadas nas ruas. Ao contrário de nós, a expressão pública de afeto entre amigos é socialmente autorizada. Assim como meninas escolares no Brasil, os indianos de qualquer idade andam abraçados com seus colegas. A mesma intimidade entre homens, vi em vários países de tradição árabe. Aos homens, é permitido o toque como sinal de amizade. O curioso é que esse traço cultural não elimina a homofobia. Ao contrário, a homofobia é uma prática de ódio que convive com essas redescrições culturais sobre o corpo e o encontro entre os sexos. Entre nós, a novidade parece ser a de que nem mesmo o afeto entre pais e filhos será permitido pela patrulha homofóbica.

Um pai de 42 anos e um filho de 18 se abraçaram. De madrugada, cantavam juntos em uma festa ao ar livre no interior de São Paulo. Consigo imaginá-los felizes, razão para demonstrarem afeto mútuo. Foi o sinal para que dois homens desconhecidos perguntassem se eram gays. Insatisfeitos com a resposta negativa, saíram em busca de outros homens para iniciar a agressão. O pai teve parte da orelha decepada e o filho teve ferimentos leves. Pai e filho têm medo de represálias, pois os agressores estão pelo mundo, talvez orgulhosos da façanha ou, quem sabe, ainda sem entender por que não se pode agredir gays. Se tiverem algum senso de vergonha pelo ato, talvez seja o de ter confundido homens heterossexuais com gays.

A violência foi praticada com um ritual de confissão em dois atos: no primeiro, pai e filho deveriam declarar suas práticas sexuais para homens desconhecidos. Os homens homofóbicos são os inquisidores da heteronormatividade. Pai e filho negaram ser gays. Por alguma razão, a performance de gênero do pai e do filho não convenceu o grupo de homófobos. Eles buscaram reforço e retornaram com mais homens para silenciar aqueles que imaginavam ser representantes dos fora da lei heterossexual. No segundo ato, foram exigidas demonstrações de práticas homossexuais: pai e filho deveriam se beijar na boca para que os agressores vivenciassem a fantasia gay.

O primeiro ato do ritual homofóbico me leva a imaginar quais teriam sido as consequências de um “sim, somos gays” – uma autoafirmação entranhada em dois homens que não suportassem mais o tribunal homofóbico. Com essa resposta, talvez não estivéssemos diante de uma imagem de uma orelha parcialmente decepada, mas de dois cadáveres. Pai e filho foram vítimas da violência homofóbica. O curioso é que os dois não se apresentam como gays, mas como representantes da ordem heterossexual. Para os vigias homofóbicos, não importavam as práticas sexuais dos dois homens, mas a manutenção da ordem pública em que homens não devem se tocar. O interdito homossexual é tão poderoso que deveria impedir, inclusive, o contato físico entre pais e filhos.

Há outro ponto intrigante nessa história que é sobre como os homófobos se formam. Essa é uma inquietação a que qualquer aspirante a sociólogo responderia com uma tautologia: os fenômenos sociais não têm causa única. Mas aqui quero arriscar um caminho de compreensão. Os homófobos deste caso foram incapazes de diferenciar uma expressão de carinho paterno de uma prática erótica entre dois homens. Como hipótese, especularia que os agressores pouco receberam afeto de homens, seja de seus pais ou de outros homens de suas redes afetivas. Uma hipótese alternativa é a de que, se houve afeto paterno, esse foi mediado pelo temor homofóbico. Essa ausência levou os agressores a desconfiar do corpo de outros homens. Ao primeiro sinal de aproximação física, a defesa é a repulsa homofóbica.

Sei que essa explicação pode parecer reducionista para um fenômeno tão complexo e dependente da cultura patriarcal como é a homofobia. Mas é intrigante o erro do radar homofóbico dos agressores, o que sugere haver um equívoco de ponto de partida: eles parecem não ter sido capazes de identificar sinais corporais de algo tão fundamental quanto o amor paterno. Mesmo que não sejam ainda pais, não conseguiram se deslocar para o lugar de filhos que já foram ou ainda são. Aos guardiões da moral heterossexual, esse é um erro de diagnóstico que denuncia uma perturbação simbólica ainda mais fundamental.

Se minha hipótese for razoável, a mediação homofóbica na relação entre pais e filhos ou entre homens que se relacionam por vínculos de amizade ou convivência perpassa a socialização de gênero dos meninos. Os homens seriam treinados para evitar expressões de afeto e carinho por outros homens. Aqui volto à imagem da Índia para lembrar que o desejo de aproximação física entre homens não está inscrito nos corpos sexuados, mas é compartilhado pela cultura em que os homens vivem. Os homófobos se formam em casa, na rua, na escola. Em todos os espaços em que a fantasia homofóbica mediar a relação entre os corpos e afetos dos homens, a violência e a injúria contra os fora da lei heterossexual irão crescer (por Débora Diniz, antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da ANIS – Instituto de Bioética, direitos humanos e gênero).

domingo, 7 de agosto de 2011

Direito de resposta contra a estupidez

Em abril passado foi publicado no Salvador na sola do pé o relatório anual divulgado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) sobre a violência praticada no Brasil contra a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros. De acordo com o relatório, em 2010 cerca de 260 homossexuais foram assassinados pelo simples fato de serem o que eram, ou seja, homossexuais. A postagem intitulada “Epidemia do ódio: o extermínio de homossexuais no Brasil” provocou a seguinte reação de um leitor que se identificou como Felipe. Pois bem, o Felipe se expressou nos seguintes termos: “Desculpe mas isso é história para boi dormir...Vítimas de violência existem de todos os tipos, não importando se é gay, negro, branco, gordo ou magro. Compare os numeros...Na verdade o que esta acontecendo é a “héterofobis” (sic) de uma minoria que esta tirando proveito da “moda gay” da mídia e banalizando os princípios da morais (sic) da familia brasileira...Não existe extermínio de gays, existe oportunismo de gays que querem levar vantagem na situação devido a massificação desse assunto na mídia. Se vcs, minoría infima tem direitos, que tal extende-los tbm aos negros, deficientes, menores abandonados, imigrantes ilegais, viciados em drogas...Ora essa, façam-me o favor...basta de desocupados escrevendo besteiras...Oportunistas...

Em primeiro lugar, gostaria de lembrar ao tal Felipe e a quem mais interessar que a postagem em questão não nega nem pretendeu negar que existem “vítimas de violência de todos os tipos”. Logo no início do texto isso fica claro: “A violência é um fenômeno social gerado por múltiplas causas, porque múltiplos são os tipos de violência. Para cada tipo, uma causa distinta. A violência resultante do narcotráfico, por exemplo, não pode ser considerada a mesma coisa que a violência no trânsito ou a violência doméstica, ou, ainda, a violência gerada pela homofobia”. Somente uma mentalidade bem tacanha para imaginar que violência é tudo igual e que somente homossexuais são vítimas dela. Ora essa, façam-me o favor!

Segundo ponto. De que família brasileira os falsos moralistas estão falando? De onde eles/elas pensam que saem os gays? De chocadeiras? Creio que não. Homossexuais são fruto de uma união, familiar ou não, como qualquer outra pessoa, seja esta pessoa negro, branco, judeu, evangélico, mulçumano, católico, rico, pobre, gordo, magro, intelectual e até mesmo os estúpidos. Mesmo estes últimos são frutos de uniões familiares ou não. Portanto, para se falar em moral deve-se especificar que moral é essa. Não creio que seja a moral da família brasileira, mas, sim, de algumas famílias brasileiras retrógradas, estúpidas, tacanhas e extremamente egoístas, pois só pensam no bem-estar dos seus, esquecendo-se do bem-estar das demais famílias, especialmente do bem-estar das mães, pais, irmãos, sobrinhos, netos, filhos e filhas de inúmeros homossexuais que são barbaramente assassinados no Brasil todos os anos. Ora essa, façam-me o favor!

Terceiro ponto. Num Estado democrático e laico como o Brasil, todos têm direitos. Mais que isso. Todos têm direitos a ter direitos. Mulheres, negros, deficientes físicos, menores abandonados, imigrantes ilegais, viciados em drogas possuem sim direitos. Se o Felipe e outros como ele não sabem, é preciso que saibam que no Brasil racismo, por exemplo, é crime inafiançável (LEI Nº 9.459, DE 13 DE MAIO DE 1997). O que diz a lei? Que todos os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional devem ser punidos com pena de reclusão de um a três anos e multa. Do mesmo modo, praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. E ainda, “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem”, pena de reclusão de um a três anos e multa.

Perceberam como muita gente tem direitos no Brasil? E o que dizer sobre a Lei Maria da Penha (LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006)? Agora as mulheres possuem um instrumento legal para coibir a violência da qual são vítimas pelo simples fato de serem o que são, ou seja, mulheres. Se vários grupos sociais já possuem instrumentos legais para se defender e/ou coibir a violência da qual são vítimas pelo simples fato de serem o que são, Por que negar esse direito aos homossexuais, travestis e transgêneros? Qual a razão desse suspeitoso ódio e/ou receio? O que não dá é para negar os fatos. Ora essa, façam-me o favor! Informação não tem contra-indicação e é o melhor remédio contra a estupidez.

Por fim, gostaria de levantar duas questões. A primeira diz respeito à acusação de desocupado. A pergunta que não quer calar é a seguinte: quem seria mais desocupado, aquele que escreve “besteiras” ou aquele que lê as besteiras escritas por um suposto desocupado e que, como se não bastasse, se dispõe a tecer comentários estúpidos? Trata-se de uma questão para refletir. A outra questão é a seguinte. Para quem acha que a aprovação do PLC 122/2006 , que visa criminalizar a homofobia no Brasil, é fruto de oportunismo ou uma mera besteira, sugiro que leia a notícia que foi divulgada pela imprensa sobre pai e filho que foram espancados por suspeitosos homofóbicos porque estavam abraçados e, por isso, foram confundidos com homossexuais pelos suspeitosos agressores (vide abaixo). A pergunta que fica é a seguinte: devemos permitir que nossa sociedade continue vivendo tempos de trevas? (pelo desocupado Sílvio Benevides)



Confundidos com casal gay, pai e filho são agredidos em São Paulo - Foi um simples gesto de afeto entre pai e filho que motivou um espancamento. Os dois estavam andando abraçados por uma feira agropecuária no interior de São Paulo, quando foram parados por sete homens. “Eles perguntaram se a gente era gay. Eu disse que não, que éramos pai e filho. Eles ficaram bravos e disseram ‘não, vocês são gays’”, conta o pai.

O grupo foi embora, mas logo voltou. Pai e filho foram abordados novamente, desta vez com chutes e socos. “Não pode nem abraçar o filho. Ainda abracei ele, coisa de um segundo, não sei se abracei para chamar ele para tomar alguma coisa, é algo normal. O coitado veio para cá só para ir na festa, e perdeu a festa”, contou ele sobre o ocorrido na madrugada de sexta-feira (15). O autônomo vive em uma chácara em Vargem Grande do Sul, cidade vizinha, com os pais. O filho mora em São Bernardo do Campo, no ABC, com a mãe, e havia ido para o interior especialmente para o evento.

“Estava eu, meu filho, minha namorada e a namorada dele. Elas foram no banheiro e nós ficamos em pé lá. Aí eu peguei e abracei ele. Aí passou um grupo, perguntou se nós éramos gays, eu falei ‘lógico que não, ele é meu filho’. Ainda falaram ‘agora que liberou, vocês têm que dar beijinho’. Houve um empurra-empurra, mas acabou. Eles foram embora, achamos que tinha acabado ali”, contou o autônomo.

Pouco depois, entretanto, o grupo voltou. “Não sei se eu tomei um soco, o que foi, veio de trás, pegou no queixo, eu acho que eu apaguei. Quando eu levantei achei que tinha tomado uma mordida. Eu senti, a minha orelha já estava no chão, um pedaço.”

Uma mulher que estava no local pegou o pedaço da orelha e colocou em um copo com gelo. O autônomo foi com um amigo até um hospital da cidade, que o encaminhou para um cirurgião plástico. Ao analisar o ferimento, o médico afirmou que não se tratava de uma mordida, e sim um ferimento causado por algo cortante. Devido à complexidade do problema, o médico recomendou que o autônomo se consultasse no Hospital das Clínicas de São Paulo. “Cheguei lá e uma junta de médicos disse que foi algum objeto cortante e muito bem afiado, porque cortou um pedaço”, afirmou a vítima.

Para o psiquiatra Geraldo Balone o ataque mostra que só a intolerância justifica essa agressão. “Isso oferece um risco muito grande para o comportamento das pessoas em sociedade, porque pode ser interpretado como homossexual ou como pedófilo e ter uma punição desse tipo com tanta intolerância”, diz.

Um casal gay que mora em Porto Alegre sofre com a agressão dos vizinhos. Eles já registraram seis ocorrências na polícia em um ano. “Eu estava de manhã em casa, ele invadiu meu pátio, só que achou que não tinha ninguém. Quando abri a janela, me deparei com ele dizendo que ia me matar. Aí atirou um tijolo em mim”, relata.
 
O Brasil é o país com o maior número de crimes contra gays no mundo e muitos casos acabam em mortes. Uma pesquisa identificou que o estado com mais casos registrados é a Bahia, seguido por Alagoas e São Paulo. Em 2007 foram 147 mortes. Em 2010 foram 260, de acordo com o levantamento do Grupo Gay da Bahia. Um aumento de mais 70% em três anos. Na semana passada, o estudante de psicologia Isac Matos, de 24 anos, foi encontrado morto no apartamento onde morava com o namorado na orla de Salvador.

Segundo o psiquiatra, a intolerância aos homossexuais é gerada pelo medo do diferente. Mas ele explica que o problema está mesmo na forma como as pessoas encaram manifestações de afeto. “Isso tira a espontaneidade do relacionamento humano, do carinho, da afeição, do amor, do afeto e pode causar uma consequência séria no sentido dessa vigilância do comportamento alheio, das atitutes carinhosas em público. Isso pode trazer um constrangimento muito grande”, afirma o psiquiatra. A polícia ainda não encontrou os agressores. O caso foi registrado no 1º Distrito Policial de São João da Boa Vista, onde foi aberto inquérito para apurar o caso. As vítimas não conhecem os suspeitos. A polícia tentará identificar os autores da agressão. Eles também poderão responder por discriminação. O autônomo pretende procurar um advogado para saber o que pode ser feito. Ele está sem trabalhar e ainda apresenta hematomas em um dos braços e nas costas. Seu filho também foi agredido e teve ferimentos no corpo, mas já retornou para o ABC. “Segundo o cirurgião plástico, se eu for fazer a reconstrução vou gastar de R$ 25 mil a R$ 35 mil. Vai ter que tirar cartilagem da costela. Não saio muito. Fui um dia só, para agradar a namorada e o filho, e acontece isso.” (por Juliana Cardilli para o Portal G1 São Paulo e Marcelo Ferri para o Jornal Hoje).