terça-feira, 28 de julho de 2009

O erotismo 2

O erotismo pode ser interpretado de maneiras distintas. Há quem o interprete tomando como ponto de partida questões mais voltadas para a sexualidade. Outros, preferem abordá-lo do ponto de vista filosófico. O autor do artigo a partir do qual a presente resenha foi elaborada, Luiz Renato Martins, optou por essa segunda abordagem para discorrer sobre o referido tema.

Partindo de uma análise da trajetória filosófica de Georges Bataille, Renato Martins afirma que nem sempre o erotismo está diretamente ligado à noção de desejo, como ocorre na obra do autor que ele analisa. Quando o desejo aparece nos escritos desse autor, argumenta Martins, geralmente nos remete a situações sem conotação sexual direta, diferentemente das concepções usuais da psicanálise, que passou a pensar essa questão como atributo da sexualidade. Assim, de acordo com Renato Martins, o desejo em Bataille surge, na maioria dos casos, como uma operação do espírito que busca uma evolução cognitiva. Faz-se necessário, portanto, por de lado a via do desejo para poder entender o erótico na obra Bataille.

O ponto de partida de Bataille para discutir o erotismo é a Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Como se vê, o exame do erotismo feito por ele está à luz da interpretação do pensamento hegeliano, um pensamento que se ocupa bastante com a questão do conflito. Para Martins, não é intenção de Bataille transgredir ou contestar Hegel. Entretanto, ele propõe uma atualização desse mesmo pensamento, o que eqüivale dizer modernização. Como?

Através, principalmente, dos dados fornecidos por Freud e Marcel Mauss na Psicanálise e na Antropologia, respectivamente.

O erotismo, para Bataille, estabelece dois planos de conflito: o primeiro (deboche), se constitui numa oposição à elevação moral do pensamento; o segundo, se manifesta numa cisão irreconciliável da consciência, problematizando a integridade do espírito.

“Os contatos da consciência com a vida e as relações entre as diferentes figuras da consciência são pensadas por Hegel mediante o esquema da luta […] Em tal sistema, o conflito está determinado e tem um conflito. Assim, o entendimento, no papel de forma inferior do espírito, distingue externamente os oponentes; já na fase seguinte, o conflito é absorvido e se torna interno. Nesse percurso, o progresso da consciência de si acaba por conduzir à supressão das diferenças e ao reencontro da consciência consigo, constituindo-se então como Razão […] nessa evolução, desaparecem as desigualdades iniciais entre as consciências oponentes. Os pólos adversários se reconhecem, em uma unidade externa e interna. Alcança-se assim a superação dos conflitos. Desse modo, para Hegel, a luta funciona apenas como forma provisória, fase de um processo cuja meta é a unidade pacífica e sintética de todas as diferenças”.

Para Bataille ocorre o oposto. O erotismo estabelece contradições insuperáveis na consciência. A experiência erótica atesta o caráter duplo do espírito, ou seja, sua heterogeneidade. Essa heterogeneidade, afirma, simultaneamente, de acordo com Martins, o interdito e a transgressão, a oposição entre pensamento e espírito, a ordem e a desordem e por isso ela é insuperável. Diferentemente de Hegel, em Bataille a consciência (o Espírito), uma vez separada, não tem mais como reconciliar-se. Ele descarta, portanto, a síntese e a pacificação das contradições. É desse modo que Bataille propõe a atualização da fenomenologia hegeliana, ultrapassada, segundo ele, por saberes mais modernos, como a psicanálise, a antropologia, a sociologia, etc. Assim, o destaque que Bataille dá à questão do erotismo acaba necessariamente salientando sua qualidade de PARADOXO.

Sartre o critica por desconsiderar a síntese e a pacificação da consciência e por isso o situa entre os discípulos “infiéis” de Hegel. Para Martins, entretanto, apesar da crítica sartriana ser procedente, Bataille não pode ser classificado como um “infiel”, pois, segundo ele, a posição de Bataille em considerar as contradições da consciência sem solução se explica por sua aproximação com os escritos de Nietzsche.

Qual a importância do pensamento de Nietzsche na obra de Bataille?

Segundo o Bataille, o niilismo (redução a nada; descrença completa; doutrina política segundo a qual o progresso da sociedade só é possível após a destruição de tudo aquilo que existe socialmente) de Nietzsche eliminou qualquer esperança de apaziguamento do espírito, colocando o conflito como algo inerente à sua própria constituição. Desse modo Nietzsche conseguiu evitar a síntese e, por conseguinte, impediu a constituição da Razão.

Assim Bataille se distancia do arcabouço metafísico de Hegel e nesse seu percurso passa a travar uma luta com as filosofias de Heidegger e de Sartre. O seu pensamento, segundo Renato Martins, se ordena mediante tal confronto. Assim, acaba por se tornar um acorde dissonante tanto do existencialismo quanto da fenomenologia. Somente através desse confronto é que podemos, de acordo com Renato Martins, entender a questão do erotismo em Bataille.

O erotismo aparece em Bataille como um contraposto à noção de LIBERDADE apresentada por Heidegger e por Sartre. Para ele, a experiência erótica, assim como o riso, o choro, o sacrifício, etc., escapa à ordenação cognitiva, ou seja, no mínimo ultrapassa o conhecimento como um fim, visto que se desvencilha do esforço específico de significar (experiência fenomenológica), pois desenvolve intensa atividade emocional. Adentra uma região normalmente velada pela consciência, ou, segundo Bataille, “uma região obscura, fechada à fenomenologia”, que é a AFETIVIDADE. Desse modo, Bataille separa a experiência em dois domínios distintos: o da consciência e o da afetividade. Note que ao fazer tal separação, Bataille está enfatizando o caráter heterogêneo do espírito. Portanto, esses dois domínios não são conciliáveis.

Nesse ponto tem início toda a crítica que ele faz a Heidegger. Começa por se contrapor a este, tomando o RISO como ponto de partida para seu pensamento e não a ANGÚSTIA como o faz Heidegger.

Para Heidegger, o outro provém da angústia, ou seja, o nada. Assim, segundo ele, “a angústia constitui um estado propício à revelação da totalidade”. Como Bataille considera a consciência dotada de contradições irreconciliáveis, descarta, portanto, a revelação de uma totalidade. Com isso, contrapondo-se à angústia, que remete à totalidade, o riso, para Bataille “pressupõe o não-sentido e conduz ao não-saber”.

Negando qualquer remissão à totalidade e enfatizando o não-saber, o não-sentido, Bataille entra em desacordo com a noção de liberdade de Heidegger, que dada a sua primazia no ser, acaba por vincular-se à essência da verdade e ainda à noção de totalidade. Para superar tal idéia, Bataille elabora a noção de SOBERANIA, surgida com o embate travado com Sartre.

Segundo Renato Martins, a experiência da liberdade, para Sartre, ocorre mediante uma escolha racional (o homem pode escolher ser isto ou aquilo), conjugada a uma aspiração que escolhe valores (escolher é afirmar o valor do que escolhemos). A liberdade em Sartre, portanto, caracteriza-se como uma ação moral. Desta maneira, a CONSCIÊNCIA aparece como forma necessária da liberdade.

Bataille, entretanto, não coloca a consciência na centralidade do seu pensamento. Assim, ele descarta o que, em Sartre, aparece como mais legítimo, ou seja o cogito, adotando a categoria dos afetos como algo nato e imediato, e não como estados da consciência. O que ele propõe, portanto é libertar-se da noção de liberdade, em favor da noção de SOBERANIA para que se possa ir além da necessidade.

Em que consiste a soberania para Bataille? A noção de soberania cunhada por Bataille foi influenciada pelos trabalhos de Marcel Mauss no que se refere ao potlach. Tal noção consiste num impulso da consciência ao desperdício, ao esbanjamento, o que vai de encontro ao impulso da acumulação, característica do capital. Na sua definição, o burguês é o ser mais avesso à soberania, uma vez que seu objetivo é acumular e seu maior prazer se encontra na opulência.

Renato Martins recorre a algumas imagens, oferecidas pelo próprio Bataille para exemplificar sua noção de soberania. Por exemplo: um operário que se serve de um copo de vinho; um pobre que numa manhã de primavera vislumbra um raio de sol numa rua miserável; um fumante tragando seu cigarro. A soberania estaria, então, ligada ao prazer, experiência esta submersa na região da afetividade, a qual escapa à ordenação cognitiva, que dissocia a vida mental dos imperativos e ditames sobre os comportamentos.

Para Bataille, uma ação soberana está correlacionada aos impulsos de esbanjamento. “Ela se refere a uma opção da consciência favorável ao desperdício, benevolente com a perda. Assim, a soberania se apresenta como perspectiva operatória, que avalia condutas, excluindo, ao se efetuar, toda referência a alguma finalidade [acaso existe alguma finalidade em fumar, ou contemplar o sol?], a uma essência, a uma origem determinante. A soberania assinala a dispensa das representações da vida humana conjugadas a sinais de servidão e insuficiência”. Desse modo, “no âmbito dos comportamentos, os seres não escapam à necessidade imperiosa, uma vez o excesso se fazendo sentir, de desperdício. Contudo, com freqüência, tais gastos são malditos [a PARTE MALDITA, não reconhecida pela consciência, que busca destruí-la]. A consciência não costuma tolerar perdas improdutivas ou insensatas”. Como se vê, a soberania, para Bataille, “não conduz ao universal ou à Razão, não se efetua como momento de síntese do espírito” (por Coccinelle).

Resenha feita a partir da seguinte obra:

MARTINS, Luiz Renato. "Do erotismo à parte maldita". In: NOVAES, Adauto (org.). O Desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Esperando os bárbaros – Konstantinos Kaváfis

Por que não acorrem como sempre nossos ilustres oradores
a brindar-nos com o jorro feliz de sua eloqüência?
Porque hoje chegam os bárbaros
que odeiam a retórica e os longos discursos.

Por que de repente essa inquietude
e movimento? (Quanta Gravidade nos rostos!)
Por que esvazia a multidão ruas e praças
e sombria regressa a suas moradas?

Porque a noite cai e não chegam os bárbaros
e gente vinda da fronteira
afirma que já não há bárbaros.

E o que será agora de nós sem bárbaros?
Talvez eles fossem uma solução afinal de contas.
*
KONSTANTINOS KAVÁFIS (Κωνσταντίνος Πέτρου Καβάφης) nasceu em Alexandria em 1863 e faleceu em 29 de abril de 1933, dia do seu aniversário, na mesma cidade. Pertencera a uma importante família burguesa de origem grega e passado aristocrático. Consta que sua mãe, ansiando por ter uma filha, criou-o como uma menina durante algum tempo. Muitos tentam explicar a origem da reconhecida homossexualidade do poeta através desse fato. Em 1870, após a morte pai, a mãe viaja com ele para a Inglaterra, onde vivem em Londres e depois em Liverpool. Em 1882 tentam retornar para Alexandria, mas, devido a intervenção armada britânica no Egito, refugiam-se em Constantinopla. Finalmente, em 1885 voltam a Alexandria, onde o poeta viverá até a morte, embora, ocasionalmente, tenha feito viagens à Inglaterra, França e Grécia. Morou com a mãe enquanto ela viveu. Tornou-se funcionário do Ministério da Irrigação. A partir de 1907, com a morte ou imigração dos irmãos, viveu praticamente só. Kaváfis tornou-se um dos poetas mais importantes de Alexandria, escrevendo em sua língua materna, o grego. Em vida publicou muito pouco: duas plaquetas em 1904 e 1910, uma com 14 e a outra com 21 poemas, e poemas esparsos, em folhas soltas, que enviava a quem os pedia. Assim mesmo seu prestígio literário foi grande e imediato, ao ponto do governo grego lhe conceder o prêmio Fênix. Em sua poesia renunciou à métrica tradicional; combinava o moderno e o arcaico, e elementos helenísticos com bizantinos. Criou uma expressão própria e peculiar, marcada pelo que os críticos chamaram de um lirismo objetivo, por tons dramáticos e uma tonalidade trágica. Dizia-se um poeta historiador. Morreu em 29 de abril de 1933, no dia de seu aniversário. Em 1935 sua obra ganhou uma edição completa, e a partir daí foi traduzida para várias línguas, entre elas o português. A edição mais abrangente de suas obras no Brasil é a da tradução de José Paulo Paes, publicada em 1982 (por Flávio Aguiar).

BELEZA É TAMBÉM MULTIPLICAR OS DONS

domingo, 12 de julho de 2009

Epístola de São Paulo aos efésios

A mim, o mais insignificante dentre todos os santos, coube-me a graça de anunciar entre os pagãos a inexplorável riqueza de Cristo, e a todos manifestar o desígnio salvador de Deus, mistério oculto desde a eternidade de Deus, que tudo criou.

Que Cristo habite pela fé em vossos corações, arraigados e consolidados na CARIDADE, a fim de que possais, com todos os cristãos, compreender qual seja a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, isto é, conhecer a CARIDADE DE CRISTO, que desafia todo o conhecimento, e sejais cheios de toda a plenitude de Deus.

Exorto-vos, pois – prisioneiro que sou pela causa do Senhor –, que leveis uma vida digna da VOCAÇÃO à qual fostes chamados, com toda humildade e amabilidade, com grandeza de alma, suportando-vos mutuamente com CARIDADE.

Mas a cada um de nós foi dada a graça, segundo a medida do DOM DE CRISTO, pelo que diz: Quando subiu ao alto, levou muitos cativos, cumulou de dons os homens (Sal 67,19).

A uns ele constituiu apóstolos; a outros, profetas; a outros, evangelistas, pastores, doutores, para o aperfeiçoamento dos cristãos, para o desempenho da tarefa que visa à construção do corpo de Cristo, até que todos tenhamos chegado à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, até atingirmos o estado de homem feito, a estatura da maturidade de Cristo. Para que não continuemos crianças ao sabor das ondas, agitadas por qualquer sopro de doutrina, ao capricho da malignidade dos homens e de seus artifícios enganadores. Mas, pela prática sincera da CARIDADE, cresçamos em todos os sentidos, naquele que é a cabeça, Cristo. É por Ele que todo o corpo – coordenado e unido por conexões que estão ao seu dispor, trabalhando cada um conforme a ATIVIDADE QUE LHE É PRÓPRIA – efetua esse crescimento, visando à sua plena edificação na CARIDADE.

Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: comportai-vos como verdadeiras luzes. Ora, o fruto da luz é bondade, justiça e verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor, e não tenhais cumplicidade nas obras infrutíferas das trevas; pelo contrário, condenai-as abertamente. Porque as coisas que tais homens fazem ocultamente é vergonhoso até falar delas. Mas tudo isto, ao ser reprovado, torna-se manifesto pela luz. E tudo que se manifesta deste modo torna-se luz. Por isto a Escritura diz: Desperta, tu que dormes! Levanta-te dentre os mortos e Cristo te iluminará (Is 26,19; 60,1)!

Vigiai, pois, com cuidado sobre a vossa conduta: que ela não seja conduta de insensatos, mas de sábios que aproveitam ciosamente o tempo, pois os dias são maus. Não sejais imprudentes, mas procurai compreender qual seja a vontade de Deus.

“BELEZA É TAMBÉM MULTIPLICAR OS DONS”

domingo, 5 de julho de 2009

Paixão pelo esporte

O esporte é um meio onde homens e mulheres sempre ocuparam espaços distintos e bem demarcados. Desde a Grécia antiga tem sido assim. Na pólis cada sexo tinha o seu lugar definido, mesmo em Esparta, onde era permitido que mulheres praticassem as disciplinas do corpo e da mente. Atualmente, tal premissa ainda continua valendo.

Nas competições esportivas nunca se vê homens e mulheres jogando no mesmo time. Claro que por trás disso existe a milenar idéia de que o homem é superior à mulher e por isso ele não se mistura. Entretanto, acredito haver subjacente a esta, uma outra razão, ligada a uma questão polêmica porque abala certas estruturas: a homossexualidade nos meios esportivos.

Na antiga Grécia meninas e meninos recebiam uma educação diferenciada porque caso as meninas ameaçassem os rapazes em seu próprio território – caça, guerra e esportes – o equilíbrio, por certo, se alteraria. Hoje, se levarmos em conta a homossexualidade, veremos que pouca coisa muda. Na opinião de João Silvério Trevisan, a homossexualidade nos meios esportivos abala suas estruturas porque tais meios se constituíram em espaços historicamente hetorosexistas. “Um jogador de futebol gay balança toda a estrutura do esporte que é considerado um espaço basicamente masculino e macho, machista. E mal sabem essas pessoas que é nesses espaços justamente que a máscara atua, é um espaço onde os homens criaram a possibilidade protegida de estar juntos, ou seja, ter uma experiência psicológica não necessariamente homossexual, mas com certeza homoerótica” (Caros Amigos – Outubro/2000). Assim, tal qual as meninas na antiga Grécia, na atualidade, os meninos gays abalam as estruturas dos meios esportivos por colocar em evidência a ambiguidade do macho, conforme foi sugerido acima por Trevisan (por Coccinelle).