Escritor francês diz que ser feliz virou uma obrigação, um símbolo de status e uma fonte permanente de angústia. Entrevista a PAULA MAGESTE para a revista Época n. 218 de Julho de 2002. Concordo com suas idéias e por isso resolvi reproduzir essa entrevista aqui. Voilá!
O romancista e ensaísta francês Pascal Bruckner publicou 15 livros, ganhou dois importantes prêmios literários europeus, teve uma obra, Lua de Fel, adaptada para o cinema por Roman Polanski e, doutor em letras, deu aulas em Nova York e em San Diego, na Califórnia. Aos 53 anos, mora em Paris com a segunda mulher e a filha, de 7 anos. Bruckner poderia considerar-se um homem feliz, mas isso não combina com seu livro mais recente. A Euforia Perpétua (Ed. Bertrand Brasil) denuncia a fragilidade e a crueldade de uma sociedade que transformou a felicidade em ideal coletivo e obrigatório. 'No mundo ocidental, quem não é feliz se sente excluído e fracassado', afirma o escritor. 'A felicidade é extremamente individual e efêmera por definição. Por isso, as pessoas obcecadas em conquistá-la, como a uma propriedade, sofrem em dobro e se distanciam das pequenas alegrias da vida.' Bruckner concedeu a ÉPOCA a seguinte entrevista:
ÉPOCA – Como a felicidade se tornou uma tirania?
Pascal Bruckner – No século XVIII, felicidade já deixara de ser um direito para se tornar um dever. Mas essa inversão de valores só se consolidou no século XX, depois de 1968, quando se fez uma revolução em nome do prazer, da alegria, da voluptuosidade. A partir do momento em que o prazer se torna o principal valor de uma sociedade, quem não o atinge vira um indivíduo fora-da-lei.
ÉPOCA – Se é natural ao ser humano buscar a felicidade, onde está o erro?
Bruckner – O erro é esquecer que ninguém pode dizer o que o outro deve procurar, muito menos coletivamente. É perigoso achar que a existência só tem validade se a pessoa encontrar a felicidade. Essa é apenas uma das possibilidades na vida. Há várias outras, como a paixão e a liberdade. Recuso a noção de felicidade como objetivo maior da humanidade.
ÉPOCA – O problema não é o que se considera felicidade hoje?
Bruckner – O problema é a procura. Todos os que buscam a felicidade ficam mais infelizes, porque não se trata de uma caça ao tesouro ou à pedra filosofal. A busca da felicidade está fadada ao fracasso. É como procurar o príncipe encantado. Acabamos por nos privar dos pequenos prazeres e das pequenas alegrias, e ficamos com uma insatisfação permanente.
ÉPOCA – A felicidade transformada em objetivo coletivo é uma questão política?
Bruckner – Muitos países querem se colocar como paraísos terrestres. Enquanto isso, um monte de gente morre de fome. Todos os Estados fascistas ou comunistas queriam padronizar a felicidade do povo. Isso é perigoso. Nenhum governo, patrão ou chefe de Estado tem o direito de nos dizer onde está nossa felicidade.
ÉPOCA – Confunde-se felicidade e bem-estar?
Bruckner – Dinheiro compra bem-estar, conforto, mas nada compra a felicidade. Nos países em que o Estado falha em suprir as necessidades básicas do cidadão, é compreensível que a felicidade seja vista como a ausência da tristeza. Mas ela não deve ser reduzida a uma definição pela negação. Nos países ricos, em que as pessoas dispõem de certa renda, têm casa e comem normalmente, a felicidade não é compulsória. Prova disso é que na França se consome uma enorme quantidade de antidepressivos.
ÉPOCA – Sofrimento virou doença?
Bruckner – Sempre detestamos o sofrimento, é normal. A novidade é que agora as pessoas não têm mais o direito de sofrer. Então, sofre-se em dobro. Querer que as pessoas se calem sobre a dor física ou psicológica é apenas agravar o mal.
ÉPOCA – Felicidade virou símbolo de status?
Bruckner – Mais que o dinheiro, ela é a nova ostentação dos ricos. Eles estão na mídia e exibem seus carros de luxo, sua vida amorosa extraordinária, seu sucesso social, financeiro ou mesmo moral, quando colaboram com instituições beneficentes. A felicidade virou parte da comédia social.
ÉPOCA – Isso aumenta a crença de que ela pode ser conquistada?
Bruckner – Há pessoas que correm a vida inteira atrás dela, e então a felicidade vira uma inquietação permanente. Ou seja, o sujeito já entrou no território da angústia. A felicidade vira uma prisão.
ÉPOCA – E o papel da religião em tudo isso?
Bruckner – O cristianismo coloca a felicidade como o paraíso perdido ou por vir. É a noção da felicidade perfeita, ao pé de Deus. Praticamente todas as religiões falam do sofrimento e nos prometem a felicidade depois desta vida. No catolicismo, o sofrimento é tamanho que o Deus sangra e agoniza. Por outro lado, há cada vez mais religiões que se ocupam da felicidade na Terra, como evangélicos, budistas e hinduístas, por exemplo. Na verdade, nos tornamos todos crentes laicos: tentamos cumprir na Terra o ideal que o cristianismo nos propõe para o céu. Queremos fazer nossa felicidade como os penitentes de outros tempos se flagelavam. Nós nos penitenciamos nas academias de ginástica, no esforço permanente para emagrecer, nos regimes, na obrigação de ter orgasmo.
ÉPOCA – Então nossa busca de felicidade não nos aproxima do hedonismo nem traz uma ruptura com certos valores religiosos?
Bruckner – Curiosamente, todas as revoluções feitas nesse sentido, inclusive a Francesa, desembocam em um ideal ainda muito impregnado de religião. Nosso hedonismo acaba nos mortificando. Agredimos nosso corpo para torná-lo perfeito, musculoso, imortal. As salas de ginástica cada vez mais se parecem com salas de tortura. Carregamos a Inquisição conosco, e ela é o espelho. Continuamos no universo da mutilação, que é medieval.
ÉPOCA – Isso ocorre também no Oriente?
Bruckner – Para os povos orientais, existe a noção de reencarnação. Por um lado, pode-se esperar que a próxima vida seja melhor. Por outro, é preciso viver de forma a evitar as reencarnações e, assim, poder ir ao encontro da alma imortal de Brahma ou Buda. No Ocidente moderno a vida se tornou uma seqüência de gozos. E nossa busca frenética por essa verdade parece a saga de Dom Quixote. É patética.
ÉPOCA – No século XIX, havia o 'mal do século'. Era lindo sofrer. Estamos vivendo isso às avessas?
Bruckner – O 'mal do século' era uma estratégia do individualismo. O burguês era contente e satisfeito, ao passo que o artista exibia sua tristeza para se distinguir da massa. Até a doença se tornou uma forma de singularização. Hoje, a estratégia é a mesma: se distinguir, escapar da miséria comum.
ÉPOCA – Por isso muita gente adota a atitude de ver alegria e perfeição em cada refeição, cada objeto, cada momento?
Bruckner – É a estratégia dos estóicos, de fazer tudo como se fosse a última vez. É uma revalorização da vida cotidiana. É interessante, mas pode ser um mecanismo de autopersuasão, de se convencer da felicidade da própria existência, de evitar ser pego no 'erro'. Essas são pessoas que decidiram imperativamente ser felizes. Isso é muito suspeito, porque todo ser humano tem momentos de tristeza. Tentar esconder isso é se enganar.
ÉPOCA – Os livros de auto-ajuda reforçam que só não é feliz quem não quer?
Bruckner – Esse tipo de literatura sempre existiu. São livros contra as pequenas misérias do cotidiano: como se livrar de uma febre, remover uma mancha. Hoje, no entanto, os temas são mais amplos: promete-se a felicidade. Deepak Chopra, guru das estrelas de Hollywood, faz vários livros sobre o mesmo tema: como ganhar dinheiro, como fazer sucesso. Há sempre um ou dois conselhos que funcionam, mas esse tipo de receita vive muito próximo do charlatanismo.
ÉPOCA – As pessoas felizes são menos interessantes?
Bruckner – Ninguém é feliz ou infeliz o tempo todo. A vida não se divide entre essas duas polaridades. Muito mais importante que a felicidade é a liberdade, a capacidade de enfrentar problemas. A felicidade é um valor secundário, e é bom enfatizar isso para que não se sintam culpadas as pessoas que não chegam a ser felizes.
EPOCA – O que seria a felicidade real, não-idealizada?
Bruckner – Um sentimento sem objeto preestabelecido, algo que muda de acordo com a pessoa, com a época e com a idade. Nós a encontramos em alguns momentos, mas ela é fugidia por natureza, não vem quando a chamamos e às vezes chega quando menos esperamos. Há dois erros básicos na forma como a encaramos atualmente. Um é não reconhecê-la quando acontece ou considerá-la muito banal ou medíocre para acolhê-la. O segundo erro é o desejo de retê-la, como a uma propriedade. Jacques Prévert tem uma frase linda sobre isso: 'Reconheço a felicidade pelo barulho que ela faz ao partir'. A ilusão contemporânea é a da dominação da felicidade. Um triste erro.
O romancista e ensaísta francês Pascal Bruckner publicou 15 livros, ganhou dois importantes prêmios literários europeus, teve uma obra, Lua de Fel, adaptada para o cinema por Roman Polanski e, doutor em letras, deu aulas em Nova York e em San Diego, na Califórnia. Aos 53 anos, mora em Paris com a segunda mulher e a filha, de 7 anos. Bruckner poderia considerar-se um homem feliz, mas isso não combina com seu livro mais recente. A Euforia Perpétua (Ed. Bertrand Brasil) denuncia a fragilidade e a crueldade de uma sociedade que transformou a felicidade em ideal coletivo e obrigatório. 'No mundo ocidental, quem não é feliz se sente excluído e fracassado', afirma o escritor. 'A felicidade é extremamente individual e efêmera por definição. Por isso, as pessoas obcecadas em conquistá-la, como a uma propriedade, sofrem em dobro e se distanciam das pequenas alegrias da vida.' Bruckner concedeu a ÉPOCA a seguinte entrevista:
ÉPOCA – Como a felicidade se tornou uma tirania?
Pascal Bruckner – No século XVIII, felicidade já deixara de ser um direito para se tornar um dever. Mas essa inversão de valores só se consolidou no século XX, depois de 1968, quando se fez uma revolução em nome do prazer, da alegria, da voluptuosidade. A partir do momento em que o prazer se torna o principal valor de uma sociedade, quem não o atinge vira um indivíduo fora-da-lei.
ÉPOCA – Se é natural ao ser humano buscar a felicidade, onde está o erro?
Bruckner – O erro é esquecer que ninguém pode dizer o que o outro deve procurar, muito menos coletivamente. É perigoso achar que a existência só tem validade se a pessoa encontrar a felicidade. Essa é apenas uma das possibilidades na vida. Há várias outras, como a paixão e a liberdade. Recuso a noção de felicidade como objetivo maior da humanidade.
ÉPOCA – O problema não é o que se considera felicidade hoje?
Bruckner – O problema é a procura. Todos os que buscam a felicidade ficam mais infelizes, porque não se trata de uma caça ao tesouro ou à pedra filosofal. A busca da felicidade está fadada ao fracasso. É como procurar o príncipe encantado. Acabamos por nos privar dos pequenos prazeres e das pequenas alegrias, e ficamos com uma insatisfação permanente.
ÉPOCA – A felicidade transformada em objetivo coletivo é uma questão política?
Bruckner – Muitos países querem se colocar como paraísos terrestres. Enquanto isso, um monte de gente morre de fome. Todos os Estados fascistas ou comunistas queriam padronizar a felicidade do povo. Isso é perigoso. Nenhum governo, patrão ou chefe de Estado tem o direito de nos dizer onde está nossa felicidade.
ÉPOCA – Confunde-se felicidade e bem-estar?
Bruckner – Dinheiro compra bem-estar, conforto, mas nada compra a felicidade. Nos países em que o Estado falha em suprir as necessidades básicas do cidadão, é compreensível que a felicidade seja vista como a ausência da tristeza. Mas ela não deve ser reduzida a uma definição pela negação. Nos países ricos, em que as pessoas dispõem de certa renda, têm casa e comem normalmente, a felicidade não é compulsória. Prova disso é que na França se consome uma enorme quantidade de antidepressivos.
ÉPOCA – Sofrimento virou doença?
Bruckner – Sempre detestamos o sofrimento, é normal. A novidade é que agora as pessoas não têm mais o direito de sofrer. Então, sofre-se em dobro. Querer que as pessoas se calem sobre a dor física ou psicológica é apenas agravar o mal.
ÉPOCA – Felicidade virou símbolo de status?
Bruckner – Mais que o dinheiro, ela é a nova ostentação dos ricos. Eles estão na mídia e exibem seus carros de luxo, sua vida amorosa extraordinária, seu sucesso social, financeiro ou mesmo moral, quando colaboram com instituições beneficentes. A felicidade virou parte da comédia social.
ÉPOCA – Isso aumenta a crença de que ela pode ser conquistada?
Bruckner – Há pessoas que correm a vida inteira atrás dela, e então a felicidade vira uma inquietação permanente. Ou seja, o sujeito já entrou no território da angústia. A felicidade vira uma prisão.
ÉPOCA – E o papel da religião em tudo isso?
Bruckner – O cristianismo coloca a felicidade como o paraíso perdido ou por vir. É a noção da felicidade perfeita, ao pé de Deus. Praticamente todas as religiões falam do sofrimento e nos prometem a felicidade depois desta vida. No catolicismo, o sofrimento é tamanho que o Deus sangra e agoniza. Por outro lado, há cada vez mais religiões que se ocupam da felicidade na Terra, como evangélicos, budistas e hinduístas, por exemplo. Na verdade, nos tornamos todos crentes laicos: tentamos cumprir na Terra o ideal que o cristianismo nos propõe para o céu. Queremos fazer nossa felicidade como os penitentes de outros tempos se flagelavam. Nós nos penitenciamos nas academias de ginástica, no esforço permanente para emagrecer, nos regimes, na obrigação de ter orgasmo.
ÉPOCA – Então nossa busca de felicidade não nos aproxima do hedonismo nem traz uma ruptura com certos valores religiosos?
Bruckner – Curiosamente, todas as revoluções feitas nesse sentido, inclusive a Francesa, desembocam em um ideal ainda muito impregnado de religião. Nosso hedonismo acaba nos mortificando. Agredimos nosso corpo para torná-lo perfeito, musculoso, imortal. As salas de ginástica cada vez mais se parecem com salas de tortura. Carregamos a Inquisição conosco, e ela é o espelho. Continuamos no universo da mutilação, que é medieval.
ÉPOCA – Isso ocorre também no Oriente?
Bruckner – Para os povos orientais, existe a noção de reencarnação. Por um lado, pode-se esperar que a próxima vida seja melhor. Por outro, é preciso viver de forma a evitar as reencarnações e, assim, poder ir ao encontro da alma imortal de Brahma ou Buda. No Ocidente moderno a vida se tornou uma seqüência de gozos. E nossa busca frenética por essa verdade parece a saga de Dom Quixote. É patética.
ÉPOCA – No século XIX, havia o 'mal do século'. Era lindo sofrer. Estamos vivendo isso às avessas?
Bruckner – O 'mal do século' era uma estratégia do individualismo. O burguês era contente e satisfeito, ao passo que o artista exibia sua tristeza para se distinguir da massa. Até a doença se tornou uma forma de singularização. Hoje, a estratégia é a mesma: se distinguir, escapar da miséria comum.
ÉPOCA – Por isso muita gente adota a atitude de ver alegria e perfeição em cada refeição, cada objeto, cada momento?
Bruckner – É a estratégia dos estóicos, de fazer tudo como se fosse a última vez. É uma revalorização da vida cotidiana. É interessante, mas pode ser um mecanismo de autopersuasão, de se convencer da felicidade da própria existência, de evitar ser pego no 'erro'. Essas são pessoas que decidiram imperativamente ser felizes. Isso é muito suspeito, porque todo ser humano tem momentos de tristeza. Tentar esconder isso é se enganar.
ÉPOCA – Os livros de auto-ajuda reforçam que só não é feliz quem não quer?
Bruckner – Esse tipo de literatura sempre existiu. São livros contra as pequenas misérias do cotidiano: como se livrar de uma febre, remover uma mancha. Hoje, no entanto, os temas são mais amplos: promete-se a felicidade. Deepak Chopra, guru das estrelas de Hollywood, faz vários livros sobre o mesmo tema: como ganhar dinheiro, como fazer sucesso. Há sempre um ou dois conselhos que funcionam, mas esse tipo de receita vive muito próximo do charlatanismo.
ÉPOCA – As pessoas felizes são menos interessantes?
Bruckner – Ninguém é feliz ou infeliz o tempo todo. A vida não se divide entre essas duas polaridades. Muito mais importante que a felicidade é a liberdade, a capacidade de enfrentar problemas. A felicidade é um valor secundário, e é bom enfatizar isso para que não se sintam culpadas as pessoas que não chegam a ser felizes.
EPOCA – O que seria a felicidade real, não-idealizada?
Bruckner – Um sentimento sem objeto preestabelecido, algo que muda de acordo com a pessoa, com a época e com a idade. Nós a encontramos em alguns momentos, mas ela é fugidia por natureza, não vem quando a chamamos e às vezes chega quando menos esperamos. Há dois erros básicos na forma como a encaramos atualmente. Um é não reconhecê-la quando acontece ou considerá-la muito banal ou medíocre para acolhê-la. O segundo erro é o desejo de retê-la, como a uma propriedade. Jacques Prévert tem uma frase linda sobre isso: 'Reconheço a felicidade pelo barulho que ela faz ao partir'. A ilusão contemporânea é a da dominação da felicidade. Um triste erro.
É por isso que eu, Coccinelle, falo sempre: Quero exercer o meu direito de ser triste. E tenho dito!
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