domingo, 22 de março de 2009

Reflexões sobre a intolerância

Intolerância, substantivo que as religiões e a moral nos ensina a rejeitar, mas ao observarmos o desenrolar da história humana, percebemos o quão falacioso é este discurso.

A intolerância já foi retratada pelas artes de diferentes maneiras. Sem dúvida uma das mais brilhantes é a do filme mudo alemão de 1929, Diário de uma garota perdida, dirigido por George Wilhelm Pabst. O filme narra a história de uma menina nascida no seio da alta burguesia alemã – interpretada por Louise Brooks – e que um dia se deixa seduzir por um tipo mau caráter que desejava apenas se vingar do seu pai, um homem prepotente e arrogante, tanto na vida familiar quanto nos negócios. Desse enlace resulta uma gravidez. A menina é, então, expulsa de casa, pois havia desonrado o nome da família. Com isso, passa a viver na miséria. O bebê, por conta das más condições de vida que levou a mãe durante a gravidez, morre logo após o nascimento. Para sobreviver, a garota, cuja vida perdera o sentido, torna-se prostituta. Com o passar do tempo, um de seus clientes, um homem bem conceituado na alta sociedade alemã, a pede em casamento. A garota, outrora perdida, encontra no amor a felicidade, não uma felicidade forjada para seduzir seus clientes, mas a felicidade de fato. Seu passado é esquecido por todos, o que demonstra o quão hipócritas podem ser os seres humanos. O filme termina com uma frase apoteótica: “Se no mundo houvesse mais compreensão, ninguém se sentiria perdido”.

Perdida também se sentia Letícia, personagem do romance Asfalto Selvagem, do genial escritor Nelson Rodrigues. Engraçadinha não compreendia que o sentimento que a prima nutria por ela não era tara, mas sim amor. Letícia passou a vida perdida em meio a incompreensão, até que um dia, deixando-se guiar pelo desespero, atirou-se embaixo de um caminhão. Morreu na selvageria do asfalto urbano onde, de acordo com o triste Dr. Odorico Quintela, também personagem do referido romance, alguns tipos de amor devem ser sufocados, mas o ódio... Ah, este pode ser gritado aos quatros cantos do mundo, sem ofender a honra ou a moral de quem quer que seja.

Ao contrário da pobre Letícia, outros não se deixam abater pela intolerância. Levantam, sacodem a poeira e dão a volta por cima, seguros que nasceram para reinar feito majestade. É o caso do eterno líder da banda Legião Urbana, Renato Russo, que partiu rumo a imortalidade em 11 de outubro de 1996. Dois anos antes, em 1994, Renato Russo lançou o CD The Stonewall Celebration Concert no qual ele assume publicamente sua homossexualidade, celebrando-a com canções como Cathedral Song, Cherish, Miss Celie's Blues, The ballad of the sad young men, If tomorrow never comes, Say it isn't so, Let's face the music and dance, Somewhere, Close the door lightly when you go, entre tantas outras canções extraordinárias.

Sobre a atitude de expor ao grande público sua condição de homossexual, Renato Russo comentou: “Para mim foi uma experiência tão boa! É muito feio ficar fingindo que está com uma mulher! Eu tenho zilhões de amigas, mas não fico fingindo que estou comendo a menina e fingindo que tenho um relacionamento quando todo mundo sabe que não é. É uma hipocrisia, mas é uma questão complicada. Cada pessoa tem sua decisão. Eu me abri porque achei que estava na hora, me daria mais liberdade em meu trabalho, de falar certas coisas. E, também, eu coloco certas coisas nas músicas e não queria prejudicar um jovem, ou uma jovem, que está ouvindo aquilo, sentindo aquilo, sem saber se aquilo é aquilo mesmo ou não. Está ouvindo uma música que fala de uma sensação de diferença, de solidão, ou mesmo de felicidade, que está ligada a essa diferença afetiva que eu tenho e quem está ouvindo também. Por exemplo, Vento Litoral eu fiz para meu ex-namorado. Mas tento escrever de uma maneira que qualquer pessoa possa interagir com aquilo e cantar para outra pessoa. Eu não falo 'aquele bofe me abandonou', sabe? Eu digo: 'já que você não está aqui, o que eu posso fazer é cuidar de mim'. Agora, a partir do momento que existe uma sensibilidade diferente – e as pessoas que tem essa mesma sensibilidade vão perceber que tem alguma coisa ali – acho que o fato de não abrir o jogo é desonesto com meu público. Mesmo. Eu achei que era irresponsabilidade com essas pessoas. É o público que me sustenta. E à Legião Urbana, entende? Claro que sei que sou capaz de escrever uma música, sei cantar direitinho, mas é o público que me deu tudo que tenho de bom. Vou ficar mentindo? Que saco!” (entrevista concedida a Eliane Lobato e publicada na revista Sui Generis 28 – 1997). Pessoas como Renato Russo fazem a gente crer que a humanidade não é apenas intolerância. É também beleza em todas as suas nuances (por Coccinelle).

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