domingo, 2 de janeiro de 2011

Poema Falado: Morte e vida severina (prólogo)

Um dos grandes nomes da poesia brasileira do século XX, João Cabral de Melo Neto, nasceu no Recife no dia 09 de janeiro de 1920. Seus primeiros dez anos de vida foram praticamente passados no engenho da família, em São Lourenço da Mata-PE. A infância à beira do rio Capibaribe o marcaria para sempre. Os trabalhadores da fazenda de seu pai lhe traziam folhetos de literatura de cordel, assim teve seu primeiro contato com a literatura. Sem saber ler, esse homens o escalavam para sessões de leitura nos momentos em que não estavam trabalhando nos canaviais.

Na juventude, já no Recife, ao ler Manuel Bandeira e Mário de Andrade pela primeira vez, ficou aliviado com a possibilidade de ser poeta sem escrever como Olavo Bilac. Até então, tinha horror à poesia por só ter tido acesso aos poetas parnasianos. “Aquilo me dava nojo”, diria mais tarde.

Mudou-se para o Rio de Janeiro com pouco mais de 20 anos. Aproximou-se do primo Manuel Bandeira, 34 anos mais velho, e também ficou amigo de Carlos Drummond de Andrade, a quem pediu para ser apresentado e apontaria depois como seu grande mestre na literatura brasileira.

O escritor e crítico literário, membro da Academia Brasileira de Letras, Antonio Carlos Secchin, que melhor analisou a obra de João Cabral, segundo o próprio poeta, avalia que Cabral é “o último grande clássico da nossa poesia, na seqüência de Bandeira e Drummond”.

Para ter tempo e estabilidade financeira para ler e escrever, João Cabral escolheu a carreira diplomática. Em 1944, prestou exame para o Itamaraty e foi nomeado diplomata em dezembro de 1945 – profissão que seguiu por mais de 40 anos e lhe proporcionou grandes oportunidades culturais. Morou em vários países. A Espanha foi o primeiro deles. E também a primeira viagem internacional do poeta, aos 27 anos. Viveu ainda na França, em Portugal, na Suíça, no Senegal e em Honduras. As viagens e as mudanças constantes eram uma obrigação profissional e o deixavam tenso, pois tinha medo de avião!

No documentário Recife/Sevilha – João Cabral de Melo Neto, dirigido por Bebeto Abrantes, sua filha, a cineasta Inez Cabral, conta que ele temia morrer em um desastre aéreo e por isso preferia fazer as viagens sozinho. A família ia depois. João Cabral também não gostava de se envolver com a parte prática das mudanças, deixava essa tarefa para a esposa, que tratava de organizar tudo enquanto ele esperava no hotel.

Nenhum país o marcou tanto quanto a Espanha. O homem e as manifestações culturais do país o fascinavam, mais precisamente a cidade de Sevilha, onde foi cônsul-geral entre 1962-1964. As touradas também despertavam o seu interesse. Em certa ocasião, o poeta Ferreira Gullar o acompanhou para conhecê-las. “Eu achei aquilo de um sadismo imenso, mas ele gostava”, revela Gullar. “Para ele, era a vitória da razão contra a animalidade”, completa.

Na casa de João Cabral, em Barcelona, Gullar perguntou o porquê de tantos quadros concretistas na sala. Cabral respondeu que precisava de alguma coisa que tivesse ordem, já que a sua cabeça era uma grande confusão. “Ele não era formalista porque queria. O que ele tinha era uma necessidade de ordem. Queria se livrar da sua instabilidade emocional através de coisas concretas. Por isso mesmo, para entender João Cabral, é preciso entender como ele era, e não julgá-lo pelas coisas que se diziam a seu respeito”, conclui.

João Cabral tinha como diferencial a construção de sua poesia. Achava que ela precisava ser feita arquitetonicamente, tal como a flor: não precisava ser perfumada ou cheia de sentimentalismo derramado. Conhecido como o Engenheiro das Palavras, era contra a espontaneidade. “Da primeira palavra à última, todas elas têm que ter um sentido, de forma que a primeira é tão difícil quanto a última”, explica o próprio poeta em cena do documentário Recife/Sevilha.

O jornalista e biógrafo José Castello esteve com João Cabral em 21 longos encontros para escrever o livro João Cabral de Melo Neto – O homem sem alma. Ele explica que o poeta criou um mito em torno de si. “O homem sem alma (alma como mundo interior, e não no sentido religioso), seco, contido e cerebral, era apenas uma casca, uma armadura. Bela armadura, aliás, que lhe rendeu poemas extraordinários. Mas, dentro de João, e seus poemas, os sentimentos, os conflitos e a desordem ferviam”, explica o jornalista.

Castello conviveu com Cabral de 07 de março de 1991 a 06 de abril de 1992, quando o poeta, já tendo encerrado sua carreira diplomática, vivia em um apartamento na praia do Flamengo, no Rio de Janeiro. Nessa fase, João Cabral estava com a saúde frágil e sofria de uma depressão a qual preferia chamar de melancolia. “Quase não saía mais de casa e, por causa dos problemas de visão, não via mais futebol na TV, o que adorava fazer. Não suportava mais ler literatura, porque se emocionava demais. Tentava ler ensaios de geografia ou de história, mas até eles o perturbavam. Estava com a sensibilidade à flor da pele”, conta.

A solidão e o vazio eram enfrentados na companhia das pessoas que o visitavam. João Cabral não acreditava em psicanálise, pelas más lembranças de um período de seis meses que passou internado em um sanatório, na juventude, por sugestão de um primo médico, para tentar se livrar das constantes dores de cabeça que sentia. Segundo dizia, elas começaram quando, aos 16 anos, foi rejeitado para um trabalho como jornalista.

Durante 50 anos, essas crises constantes de enxaqueca o acompanhariam e a aspirina seria sua grande compulsão. A dor só desapareceu em 1986, quando foi submetido a uma cirurgia de emergência por problemas no estômago e cortaram-lhe o nervo simpático. Já a melancolia o acompanhou até o fim da vida. Teria começado quando em 1952, foi acusado de subversão por Carlos Lacerda [governador do Rio], por ter escrito ensaio sobre o escultor e pintor espanhol Joan Miró. “Talvez por ter sido visto como alguém que eu não sou”, disse Cabral a José Castello.

Seus últimos anos foram de grande vazio por conta de uma doença degenerativa que o fez perder a visão. Considerava a cegueira castigo, ela o privava das duas coisas que mais gostava de fazer: ler e escrever. João Cabral de Melo Neto morreu no dia 09 de outubro de 1999, aos 79 anos, no apartamento em que morava, na praia do Flamengo, na zona sul do Rio.

O autor de Pedra do Sono (1942), Os três mal-amados (1943), O engenheiro (1945) e Psicologia da composição (1947) ficou impressionado ao ler uma reportagem informando que a expectativa de vida na Índia era de 29 anos e no Recife, 28. Escreveu, então, O cão sem plumas, publicado em 1950. A partir daí, dizia, Pernambuco não o largou mais. Sua obra completa foi reunida e publicada em 1994.

Cabral considerava o clássico Morte e vida severina, de 1956, uma obra menor, que não chegava a ser poesia. Era “apenas” um monólogo-diálogo, apesar de ser sua obra mais popular. Segundo Antonio Carlos Secchin, “ele propositalmente desvalorizava Morte e vida severina, talvez para chamar a atenção para outros títulos da sua obra. Um poeta de sua estatura não pode mesmo se ver reduzido a um só livro, ainda que seja magistral e de merecido sucesso, como esse título inesquecível” (por Daniele Martins para Revista da Cultura – Edição 31 – Fev/2010).

Por discordar plenamente do João Cabral, o Cantinho de Coccinelle apresenta nesse mês o clássico universal Morte e vida severina (prólogo), o primeiro Poema Falado de 2011, para iniciar o ano em grande estilo. A base do Poema Falado é o trecho inicial da minissérie produzida em 1981 pela Rede Globo de Televisão. O poema é interpretado pelo grande ator brasileiro José Dumont. Boa audio-leitura!

“O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias ? Vejamos : é o Severino da Maria do Zacarias, lá da Serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com o nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra, magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue, que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual mesma morte severina: que é morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possas seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra”.

Nenhum comentário: